UMA CHAVE
DE LEITURA (E REESCRITA) DO LEGADO FREIREANO, NO
CALOR DOS DESAFIOS ATUAIS: Qual a contribuição de nossas organizações de
base?
Alder Júlio Ferreira Calado
Na
perspectiva freireana (não apenas), toda leitura de mundo se
acha necessariamente permeada pelas vicissitudes históricas, isto
é, sob a dinâmica do movimento do tempo, bem como da marca da espacialidade.
Não faria sentido uma análise de uma situação presente, desconectada de seus laços com
passado e temperada com um esforço prospectivo: presente-passado-futuro são traços
necessariamente interconectados, como condição de uma análise dentro
da criticidade desenvolvida (também) em Paulo Freire, não
apenas proposta, mas sobretudo testemunhado, ao longo de seu
percurso existencial. Resulta, por conseguinte, não apenas possível,
mas também necessário, ao nos debruçarmos sobre o calor da atualidade, por mais
conflituosa que se manifeste, sem a devida atenção a aspectos tais como:
De onde vem este presente? Como foi forjado, até desaguar no
que hoje se tem? que forças, durante esse período, estiveram confrontando se, e
à luz de que projetos de sociedade?
Freire: leitura e reescrita de mundo
Tanto no
conjunto de suas obras, como em suas intervenções orais (entrevistas, depoimentos,
conversações, sem contar sua
expressiva
atividade epistolar), e sobretudo em todo o seu legado existencial.
Observa-se que Freire foi sempre um observador perspicaz da
realidade social, atento a seus mais complexos movimentos, extensão
e complexidade.
O exercício de observação perspicaz, da realidade em movimento, os
registros por ele anotados de tal observação não se faziam em nome de um
mero exercício acadêmico de constatação da realidade, mas como eficazes instrumentos
voltados à transformação substantiva das relações sociais, tanto na esfera econômica,
quanto na esfera política quanto na esfera cultural neste horizonte, Freire se mostra
organicamente afinado com o espírito da Tese 11, por Marx dirigida em relação
Feuerbrach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”.
A este respeito sinto-me remetido a uma de tantas entrevistas suas em
que lhe foi perguntado como se sentia, ao ser reconhecido como
o criador de um método de alfabetização. Respondeu que se sentia agradecido por
este reconhecimento, mas que sua gula era bem maior do que isto, pois seu compromisso maior
estava voltado à transformação da realidade social. De tal movimento faz
parte seu zelo pela identificação dos mais distintos nexos presentes e
atuantes na produção de nossa realidade.
Nesse sentido, saltam à vista certos conceitos por ele trabalhados, seja
de modo explícito, seja tacitamente, mas nem por isso, menos
presentes. A começar pela categoria, ou melhor, pelo seu testemunho contínuo do exercício do
Diálogo - com os parceiros, com os diferentes, sem deixar de
considerar criticamente até os argumentos de correntes antagônicas (sem
que isto resulte em parceria!
Diálogo e outras categorias freirianas
É pelo exercício incansável do diálogo, que também vamos
exercitando nossa criticidade e nossa postura propositiva frente às mais
diversas situações desafiadoras, o exercício contínuo do Diálogo se
apresenta como condição necessária à superação de nossas próprias insuficiências
(“Inacabamento”), bem como do despertar e do assumir de nossas próprias potencialidades
(do âmbito pessoal ao comunitário) nossos limites de seres humanos não são
enfrentados adequadamente, tampouco superados, no
isolacionismo.
Precisamos da experiência comunitária, grupal (núcleos, círculos, conselhos
populares... não importa o nome), como condição para o reconhecimento
dos nossos limites pessoais e coletivos, bem como para lidar
com a superação de tais limites, ao longo de nossa existência. É por conseguinte,
fundamental o exercício contínuo do diálogo para irmos tornando-nos Gente,
protagonista da própria história, agentes de transformação
social...
É, também, graças ao exercício contínuo do Diálogo, que nos
tornamos aprendizes uns dos outros, seja no tocante a virtudes e dons,
seja no tocante também ao aprendizado com os erros alheios e com os nossos próprios
erros, caminho para o aprendizado incessante do exercício da autocrítica,
outra expressão-chave no universo vocabular freireano, segundo o qual
o
exercício da própria crítica se inicia com o exercício da
autocrítica: inútil esbravejar contra os malfeitos alheios se não
sou capaz e não faço qualquer esforço de olhar e reconhecer do
quanto que eu acuso dos outros se aloja em mim mesmo...
“Ação cultural”, “Educação libertadora”, “Diálogo”, “Consciência de inacabamento”,
“Criticidade”, “Crítica autocrítica”, “Curiosidade epistemológica”, “Autonomia”,
“Inédito viável”, “Esperançar”, “Práxis”, “Utopia”, e tantas outras
expressões-chave por ele criadas, por ele desenvolvidas ou por ele
assumidas, não correspondem precisamente a meros conceitos
acadêmicos: constituem, antes de tudo, experiências por ele
assumidas, em seu legado. Isto, todavia, não cai do céu: é fruto de incessante
processo formativo (pessoal e comunitário), a ser assumido pelos próprios protagonistas,
bem como pelas forças sociais historicamente vocacionadas a irem transformando
substantivamente, no chão do dia-a-dia, as relações sociais
hegemônicas.
Em busca da permanente construção de um novo modo de produção, de um
novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, como alternativos à
barbárie do Capitalismo, cujos efeitos vêm ameaçando, cada
vez mais, a vida no planeta, bem como as condições mais elementares do processo de
humanização. O atual momento, no Brasil e no mundo, se mostra um atestado inequívoco
destas ameaças.
Brasil, desafios e perspectivas
No caso do Brasil atual, nossa sociedade vem se mostrando
profundamente vulnerável a esta onda de barbárie que ronda todo o mundo. São
vastos e preocupantes os sinais de barbárie: a tendência à tudo resolver pelo argumento da
força, a crença assustadora na resolução dos impasses, pela força das armas; a
tenebrosa e crescente onda de classismo ou horror à causa dos pobres), de sexismo (cf. os
alarmantes índice de feminicídio, as diversas formas de violência contra as
mulheres), de racismo (o ódio destilado contra povos indígenas e comunidades
quilombolas), de homofobia, de xenofobia...O pior é que, não raro,
tais práticas se acham ou se querem estranhamente fundadas em
princípios evangélicos, retratando, em nome de Deus, a mais vil idolatria...
Bem sabemos que, tanto no Brasil, quanto na América Latina e no
Caribe, quanto no mundo, tais manifestações tenebrosas, não nasceram do nada,
mas como expressão e resultado de múltiplos e complexos fatores externos
e internos.
No caso
particular do Brasil, já tivemos um período em que nossas organizações de base,
atuando como agentes de transformação, colhiam sua força do profundo
enraizamento nas comunidades, nos núcleos, nos círculos de cultura,
nos conselhos populares, etc, período durante o qual tais riscos
e tais ameaças estiveram sob controle, visto que graças à atuação coerente desses sujeitos
(individuais e coletivos) parte expressiva da sociedade se via
alimentada e empoderada de práticas e valores ais como: a solidariedade, o
respeito à diversidade, a partilha, a disposição de diálogo, o testemunho
profético, o exercício da crítica e da autocrítica, a desconfiança nos
espaços estatais como caminho de transformação social, na
direção almejada...
Também tal realidade vivenciada naquele período, a despeito de suas fragilidades,
estava fundamentalmente ancorada na orgânica articulação de 3 campos de atuação: o
campo organizativo, o campo formativo, e o campo de mobilização.
Enquanto isto durou, significativas conquistas tiveram lugar. Abandonados ou
fortemente reduzidos tais campos, no campo e nas periferias urbanas, nossas
organizações de base, historicamente vocacionadas a ir criado condições
de efetivas mudanças societais passaram a sofrer sucessivos e
perigosos refluxos na falsa crença de que tais mudanças brotariam, não mais de um
incessante processo de transformação social (a partir de um novo homem, de uma
nova mulher), mas apenas pela mágica da ocupação de espaços governamentais.
É tempo
de resistência! Ao mesmo tempo, não será também, tempo de retomarmos, no
campo e na cidade, em novo estilo, práticas e concepções grávidas de alternatividade?
REFERENCIAS
FREIRE,
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