sexta-feira, 13 de novembro de 2020

UMA CHAVE DE LEITURA (E REESCRITA) DO LEGADO FREIREANO, NO CALOR DOS DESAFIOS ATUAIS: Qual a contribuição de nossas organizações de base?

UMA CHAVE DE LEITURA (E REESCRITA) DO LEGADO  FREIREANO, NO CALOR DOS DESAFIOS ATUAIS:  Qual a contribuição de nossas organizações de base? 

  

 Alder Júlio Ferreira Calado 

 

Na perspectiva freireana (não  apenas), toda leitura de mundo se acha  necessariamente permeada pelas vicissitudes  históricas, isto é, sob a dinâmica do  movimento do tempo, bem como da marca da  espacialidade. Não faria sentido uma análise de uma situação presente, desconectada de  seus laços com passado e temperada com um  esforço prospectivo: presente-passado-futuro  são traços necessariamente interconectados,  como condição de uma análise dentro da  criticidade desenvolvida (também) em Paulo  Freire, não apenas proposta, mas sobretudo  testemunhado, ao longo de seu percurso  existencial. Resulta, por conseguinte, não  apenas possível, mas também necessário, ao  nos debruçarmos sobre o calor da atualidade,  por mais conflituosa que se manifeste, sem a  devida atenção a aspectos tais como: De  onde vem este presente? Como foi forjado,  até desaguar no que hoje se tem? que forças,  durante esse período, estiveram confrontando se, e à luz de que projetos de sociedade?  

 

Freire: leitura e reescrita de mundo

 

Tanto no conjunto de suas obras,  como em suas intervenções orais (entrevistas,  depoimentos, conversações, sem contar sua 
expressiva atividade epistolar), e sobretudo  em todo o seu legado existencial. Observa-se  que Freire foi sempre um observador  perspicaz da realidade social, atento a seus  mais complexos movimentos, extensão e  complexidade.  

O exercício de observação perspicaz,  da realidade em movimento, os registros por  ele anotados de tal observação não se faziam  em nome de um mero exercício acadêmico de constatação da realidade, mas como eficazes  instrumentos voltados à transformação  substantiva das relações sociais, tanto na  esfera econômica, quanto na esfera política  quanto na esfera cultural neste horizonte,  Freire se mostra organicamente afinado com  o espírito da Tese 11, por Marx dirigida em  relação Feuerbrach: “Os filósofos têm apenas  interpretado o mundo de maneiras diferentes;  a questão, porém, é transformá-lo.”.  

A este respeito sinto-me remetido a  uma de tantas entrevistas suas em que lhe foi  perguntado como se sentia, ao ser  reconhecido como o criador de um método de  alfabetização. Respondeu que se sentia  agradecido por este reconhecimento, mas que  sua gula era bem maior do que isto, pois seu  compromisso maior estava voltado à  transformação da realidade social. De tal  movimento faz parte seu zelo pela  identificação dos mais distintos nexos  presentes e atuantes na produção de nossa  realidade. 

Nesse sentido, saltam à vista certos  conceitos por ele trabalhados, seja de modo  explícito, seja tacitamente, mas nem por isso, menos presentes. A começar pela categoria,  ou melhor, pelo seu testemunho contínuo do  exercício do Diálogo - com os parceiros, com  os diferentes, sem deixar de considerar criticamente até os argumentos de correntes  antagônicas (sem que isto resulte em  parceria! 

 

Diálogo e outras categorias freirianas

É pelo exercício incansável do  diálogo, que também vamos exercitando nossa criticidade e nossa postura propositiva  frente às mais diversas situações  desafiadoras, o exercício contínuo do  Diálogo se apresenta como condição  necessária à superação de nossas próprias  insuficiências (“Inacabamento”), bem como  do despertar e do assumir de nossas próprias  potencialidades (do âmbito pessoal ao  comunitário) nossos limites de seres humanos  não são enfrentados adequadamente,  tampouco superados, no isolacionismo.  

Precisamos da experiência  comunitária, grupal (núcleos, círculos,  conselhos populares... não importa o nome),  como condição para o reconhecimento dos  nossos limites pessoais e coletivos, bem  como para lidar com a superação de tais  limites, ao longo de nossa existência. É por  conseguinte, fundamental o exercício  contínuo do diálogo para irmos tornando-nos  Gente, protagonista da própria história,  agentes de transformação social... 

É, também, graças ao exercício  contínuo do Diálogo, que nos tornamos  aprendizes uns dos outros, seja no tocante a  virtudes e dons, seja no tocante também ao  aprendizado com os erros alheios e com os  nossos próprios erros, caminho para o  aprendizado incessante do exercício da  autocrítica, outra expressão-chave no  universo vocabular freireano, segundo o qual  

o exercício da própria crítica se inicia com o  exercício da autocrítica: inútil esbravejar  contra os malfeitos alheios se não sou capaz e  não faço qualquer esforço de olhar e  reconhecer do quanto que eu acuso dos outros  se aloja em mim mesmo... 

  

“Ação cultural”, “Educação  libertadora”, “Diálogo”, “Consciência de  inacabamento”, “Criticidade”, “Crítica autocrítica”, “Curiosidade epistemológica”, “Autonomia”, “Inédito viável”,  “Esperançar”, “Práxis”, “Utopia”, e tantas  outras expressões-chave por ele criadas, por  ele desenvolvidas ou por ele assumidas, não  correspondem precisamente a meros  conceitos acadêmicos: constituem, antes de  tudo, experiências por ele assumidas, em seu  legado. Isto, todavia, não cai do céu: é fruto de incessante processo formativo (pessoal e comunitário), a ser assumido pelos próprios  protagonistas, bem como pelas forças sociais  historicamente vocacionadas a irem  transformando substantivamente, no chão do  dia-a-dia, as relações sociais hegemônicas. 

Em busca da permanente construção de um novo modo de  produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de  gestão societal, como alternativos à barbárie  do Capitalismo, cujos efeitos vêm  ameaçando, cada vez mais, a vida no planeta,  bem como as condições mais elementares do  processo de humanização. O atual momento, no Brasil e no mundo, se mostra um atestado  inequívoco destas ameaças. 

Brasil, desafios e perspectivas

No caso do Brasil atual, nossa  sociedade vem se mostrando profundamente  vulnerável a esta onda de barbárie que ronda  todo o mundo. São vastos e preocupantes os  sinais de barbárie: a tendência à tudo resolver  pelo argumento da força, a crença assustadora  na resolução dos impasses, pela força das  armas; a tenebrosa e crescente onda de  classismo ou horror à causa dos pobres), de  sexismo (cf. os alarmantes índice de  feminicídio, as diversas formas de violência  contra as mulheres), de racismo (o  ódio destilado contra povos indígenas e  comunidades quilombolas), de homofobia, de  xenofobia...O pior é que, não raro, tais práticas  se acham ou se querem estranhamente  fundadas em princípios evangélicos,  retratando, em nome de Deus, a mais vil  idolatria... 

Bem sabemos que, tanto no Brasil,  quanto na América Latina e no Caribe, quanto  no mundo, tais manifestações tenebrosas, não  nasceram do nada, mas como expressão e  resultado de múltiplos e complexos fatores  externos e internos.  

No caso particular do Brasil, já tivemos um período em que nossas organizações de  base, atuando como agentes de  transformação, colhiam sua força do  profundo enraizamento nas comunidades, nos  núcleos, nos círculos de cultura, nos  conselhos populares, etc, período durante o  qual tais riscos e tais ameaças estiveram sob  controle, visto que graças à atuação coerente  desses sujeitos (individuais e coletivos) parte  expressiva da sociedade se via alimentada e  empoderada de práticas e valores ais como: a  solidariedade, o respeito à diversidade, a  partilha, a disposição de diálogo, o  testemunho profético, o exercício da crítica e  da autocrítica, a desconfiança nos espaços  estatais como caminho de transformação  social, na direção almejada... 

Também tal realidade vivenciada  naquele período, a despeito de suas  fragilidades, estava fundamentalmente  ancorada na orgânica articulação de 3 campos  de atuação: o campo organizativo, o campo  formativo, e o campo de  mobilização. Enquanto isto durou,  significativas conquistas tiveram lugar.  Abandonados ou fortemente reduzidos tais  campos, no campo e nas periferias urbanas,  nossas organizações de base, historicamente  vocacionadas a ir criado condições de  efetivas mudanças societais passaram a sofrer  sucessivos e perigosos refluxos na falsa  crença de que tais mudanças brotariam, não  mais de um incessante processo de  transformação social (a partir de um novo  homem, de uma nova mulher), mas apenas  pela mágica da ocupação de espaços  governamentais. 

É tempo de resistência! Ao mesmo tempo, não será também, tempo de  retomarmos, no campo e na cidade, em novo  estilo, práticas e concepções grávidas de  alternatividade? 

REFERENCIAS

 

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, 19ª ed,, Rio: Paz e Terra, 1989.

____________. Extensão ou Comunicação?, 4ª ed., Rio: Paz e Terra, 1979.

____________. Pedagogía del Oprimido, 8a ed., Buenos Ayres: Siglo Veintuno, 1973.

________ ___. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980.

____________. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos, 3ª ed., Rio"Paz e Terra: 1978.

____________. Educação e Mudança, 23ª ed., Rio: Paz e Terra, 1999.

____________. Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo, 2a ed., Rio: Paz e Terra, 1978.

____________. Sobre Educação (Diálogos), vol. II, Rio: Paz e Terra, 1984 (em parceria com Sérgio Guimarães).

____________. Essa Escola chamada Vida, 7ª ed., São Paulo: Ática, 1991 (em co-autoria com Frei Betto).

____________ Por uma Pedagogia da Pergunta, 2ª ed., Rio: Paz e Terra, 1986 (em co-autoria com Antonio Faundez).

____________. Aprendendo com a própria História. Rio: Paz e Terra, 1987 (em co-autoria com Sérgio Guimarães).

____________. A Importância do Ato de Ler. Em três artigos que se completam, 39ª ed,, São Paulo: Cortez, 2000.

____________. Alfabetização: leitura da palavra, leitura do mundo. Rio: Paz e Terra, 1990 (em co-autoria com Donaldo Macedo).

____________. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido, 5ª ed., Rio: Paz e Terra, 1998.

___________. Política e Educação, 5ª ed., São Paulo: Cortez, 2001.

___________. À Sombra desta Mangueira. São Paulo: Olho d'Água, 1995.

____________. Pedagogia da Autonomia, 6ª ed., Rio: Paz e Terra, 1997.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.